segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Fora de catálogo - CÁLICE



Olá, amigos.

A série Fora de catálogo chega ao seu segundo post, mostrando canções que foram cogitadas para a safra de intérprete de Roberto Carlos, mas, ao final, não entraram em seu repertório. A canção de hoje tornaria ainda mais pleno o LP no qual ela estaria.

Em 1978, Roberto Carlos lançou um disco trazendo belas canções de sua parceria com Erasmo Carlos - , Lady Laura, Café da manhã, Música suave, dentre outras. Caetano Veloso esteve presente com a música Força estranha. E, na canção que teria sido retirada do repertório, RC encontraria-se com uma música de Chico Buarque e Gilberto Gil.



Os dois a interpretaram originalmente no festival Phono 73. Este evento foi realizado pela Phonogram (atual Universal), na qual durante dois dias a gravadora reuniu seu vasto elenco em apresentações no Ibirapuera. A organização estipulou que cada participante cantasse um número solo e, em seguida, fizesse um número com outro artista. Foi assim que o palco paulistano trouxe encontros de Toquinho e Vinícius, Wanderléa e Erasmo Carlos e o polêmico dueto de Caetano Veloso com Odair José (os dois interpretaram, sob vaias, Eu vou tirar você desse lugar).

Chico Buarque e Gilberto Gil apresentariam a música mostrada hoje. No entanto, às vésperas do show, a letra foi censurada. Como forma de protesto, os dois decidiram cantar a música, mas improvisando uma letra. Todos os microfones foram desligados, e só restou a Chico lamentar com um: "vamos ao que pode". Em seguida, ele interpretou, ao lado do conjunto MPB-4, a música Baioque.

Perguntado pela revista Manchete em 1977 se gravaria Chico Buarque um dia, Roberto respondeu: "Claro. Desde que a música que ele tenha criado seja feita para eu cantar. Sabe por que, bicho? Em primeiro lugar meu público – dependendo da música – até desconfiaria de mim. Eu próprio desconfiaria de mim. É muito desonesto descolar ideologias. Cada qual deve viver o seu caminho. Acredito que – entre outras coisas – o meu público é fiel a mim porque eu jamais menti para ele".

No ano seguinte, RC confessou em entrevista que pela primeira vez teve coragem de gravar uma música de Chico. A ideia da gravação surgiu após um encontro casual entre os dois grande ídolos no saguão de um hotel, e Roberto afirmou: "Pela primeira vez, tive coragem de gravar uma canção de Chico Buarque. Suas letras são muito fortes, e apesar de eu não querer ir tão longe quanto ele, acho que consegui dar meu toque pessoal na interpretação!".

No fim de 1978, a música não chegou ao disco de Roberto Carlos. A razão mais plausível é de que o cantor não se sentira à vontade de, no mesmo disco em que faz um tributo à sua mãe, gravar uma música que dentre os versos traz: "de que me vale ser filho da santa, melhor seria ser filho da outra". Também há as possibilidades de represálias da censura ou o fato de ela não ser uma música inédita, feita sob medida para Roberto Carlos.



Chico Buarque a incluiu em seu LP do mesmo ano - também com 11 músicas, como foi o disco de Roberto Carlos. Especula-se que ele teria incluído Cálice às pressas. A belíssima gravação traz a participação do cantor Milton Nascimento e do conjunto vocal MPB-4. Ao contrário de boa parte das músicas da série Fora de catálogo, esta canção tem uma gravação de Roberto Carlos presente nos arquivos da Sony Music.

Segue a letra! Na foto, Roberto e Chico no Roberto Carlos Especial de 1993. Neste programa, RC falou de sua vontade em gravar músicas do compositor, e Chico Buarque o alfinetou, dizendo que o cantor "já esteve na bica de gravar".

Abraços a todos, Vinícius.

CÁLICE - Chico Buarque e Gilberto Gil

Pai, afasta de mim esse cálice...
Pai, afasta de mim esse cálice...
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta

De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Pai, afasta de mim esse cálice...
Pai, afasta de mim esse cálice...
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado

Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Pai, afasta de mim esse cálice...
Pai, afasta de mim esse cálice...
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

De muito gorda a porca já não anda (cálice!)
De muito usada a faca já não corta (cálice!)
Como é difícil, pai, abrir a porta (cálice!)
Essa palavra presa na garganta (cálice!)

Esse pileque homérico no mundo (cálice!)
De que adianta ter boa vontade (cálice!)
Mesmo calado o peito, resta a cuca (cálice!)
Dos bêbados do centro da cidade

Pai, afasta de mim esse cálice...
Pai, afasta de mim esse cálice...
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Talvez o mundo não seja pequeno (cálice!)
Nem seja a vida um fato consumado (cálice!)
Quero inventar o meu próprio pecado (cálice!)
Quero morrer do meu próprio veneno (pai, cálice!)

Quero perder de vez tua cabeça (cálice!)
Minha cabeça perder teu juízo (cálice!)
Quero cheirar fumaça de óleo diesel (cálice!)
Me embriagar até que alguém me esqueça (cálice!)

4 comentários:

James Lima disse...

Uma grande canção ! Uma grande letra ! Dois grandes compositores !

Uma pena o Roberto não ter gravado...

Abração !
James Lima
www.robertocarlosbraga.com.br

Everaldo Farias disse...

Assim como Se eu quiser falar com Deus, não acho essa canção apropriada para o Roberto! Se olharmos, no repertório do Chico tem muita coisa que dava para o rei, essa não!

Blog Música do Brasil
www.everaldofarias.blogspot.com

Um forte abraço a todos!

sasrj disse...

Isso é um hino contra a ditadura! Me desculpe o RC, mas essa não tem a cara dele. Aliás, o RC era o "queridinho" da ditadura militar. Nada contra, mas quem botou a cara pra bater foram aqueles que hoje são os chatos da garotada quando citados nas aulas de literatura\português.

Unknown disse...

A turma da Tropicália foi muito corajosa com suas letras inteligentes e às vezes até direta e clara contra a ditadura.
Contudo, eu vejo mérito nos integrantes da jovem guarda. Tenho certeza que suas girias incomodavam muito os moralistas do período.